Entrevista: Luz no Final do Túnel

Dezembro/2001

Edmilson Moutinho dos Santos, engenheiro eletricista, professor doutor, área de economia de energia, do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP (SP).

Os assuntos principais são crise de eletricidade e políticas energéticas.

O Sr. diz, em seus artigos, que o sistema político na área de energia está destroçado pela crise, que o ministro não tem poder nenhum, o Conselho de Política Nacional foi atropelado pela Câmara de Gestão e as estratégias adotadas acabam não resolvendo o problema. Na verdade, elas são "o caminho direto para a guilhotina dos apagões". Onde é que estão os erros e os equívocos?
Independente das opções, o ordenamento institucional se esvaziou. É difícil entender como isso se deu, talvez a coisa seja bem mais complexa. Além do que, a gente não sabe como é que se faz… Nunca tive uma experiência governamental, então não sei exatamente como se dá na prática essa distribuição de poderes entre as bases governistas. Infelizmente, as bases governistas, no Brasil, acabam sendo as bases dos papas partidários, os respectivos donos do partido. Eu imagino que o PSDB, tendo que escolher o que seria estratégico para sustentar o governo, acabou escolhendo aquilo que, finalmente, eu acho que eu teria escolhido: o controle da economia. Na verdade, o Malan faz mais um papel de primeiro ministro do que de ministro da Fazenda. O parlamentarismo perdeu, mas vivemos algo similar, porque nós temos um primeiro ministro não oficializado que acaba ditando as regras, o que é pior. Como ele não é primeiro ministro de fato, ele não pode e não deve responder como se fosse. Se oficializássemos isso, ele teria que assumir as responsabilidades de todas as pastas, já que ele interfere em todas as pastas. Acho que começa daí, de fato, a desordem. Em seguida, seguram a pasta de educação, porque eu acho que eles encararam a educação como área prioritária, eu teria escolhido a mesma coisa, e a saúde, e aí estão os ministérios do PSDB do presidente. Quer dizer, esse era o cacife que o presidente tinha na distribuição de poderes. O problema é que a parte de energia então caiu na mão do PFL, com os ministros indicados até pelo Antônio Carlos Magalhães. O problema é que, nessas indicações, de 1985 para cá, se foi perdendo a questão energética. A gente vê até pela queda no número de estudantes nos departamentos de energia, a qualidade dos estudantes vinha caindo; a energia deixou de ser um problema interessante para o jovem e, enfim, para a sociedade. Porque se começou a privilegiar a questão das telecomunicações, a questão da informática, a Internet; são questões muito mais dinâmicas, muito mais interessantes, então dedicou-se todas as atenções para essas questões modernas da nova economia, todo esse negócio aí.

Mas a energia é uma questão fundamental.
Exatamente. A energia ainda é o sangue da sociedade. Realmente ninguém dá mais bola para sangue, mesmo na medicina ocorre coisas similares, você tem coisas muito mais interessantes para estudar do que estudar sangue, mas sem sangue não adianta…

Isso no plano de governo atual, mas desde o começo da década de 1990 começou a haver indicações dos fomentadores internacionais, dos nossos credores, para começar a diminuir a participação do Estado no setor...
Isso reforça o fato de que a questão energética passou a ser uma mera questão de privatização, de mudança do ordenamento da propriedade do ativo, de redefinição do papel do estado, toda essa parte de regulação... Muito bem, só que isso não gera energia.

Nessa época, os especialistas acadêmicos já começam a alertar sobre o problema com a expansão da capacidade. Em 1994 foi feito o primeiro Congresso de Planejamento Energético, a Eletrobrás financiou, a Petrobrás financiou, se sabia que tinha tecnologia para diversificar a matriz...
É, esse apoio das grandes empresas estatais acaba se confundindo com a briga institucional porque, na verdade, tirando interesses outros que possam existir… Devem existir, não vamos esquecer… Aí já não é questão de energia, é questão de polícia… Mas tirando essas questões, a briga institucional é uma questão de eficiência, de tentar eliminar alguns dos vícios dos grandes monopólios do Estado. A Eletrobrás sempre teve vícios muito sérios, a própria Petrobrás; entre eles todo o projeto do milagre econômica, toda a construção das grandes empresas que eu costumo dizer que são obras keynesianas, leninistas… Você usa o Estado para antecipar muito o consumo, gera uma super-oferta de energia e leva anos até que o consumo iguale a oferta outra vez. Quando você tem capital barato, isso está muito bem, mas num país pobre, super endividado… Uma boa parte da dívida é justamente por isso mesmo. Na realidade dos mercados financeiros, já não se encontra mais capital barato. Os bancos cobram juros altos e avaliam os riscos como não avaliavam antes. Antes até emprestavam mal… Quantos bancos quase não quebraram, no início dos anos 1980, porque haviam emprestado muito mal…

Na década de 1980, o Brasil empresta dinheiro à Polônia, a juros baixíssimos.
É aquela idéia do contexto: você usando o Estado, o dinheiro dos outros para fazer política. Então, quando as empresas estatais passam a suportar algumas áreas da academia, digamos… Vamos ser honestos, algumas partes da academia, os nossos grupos de energia, em particular, pecamos também por isso. Sempre dependemos muito dessas relações com as empresas estatais. A maior parte das nossas atividades de pesquisa, a maior parte dos nossos laboratórios sempre foram fomentados pelo governo. Então também era suspeito, digamos assim, a relação desse grupo de acadêmicos já sinalizando um potencial de crise, as empresas dando um apoio irrestrito a esses acadêmicos… Eu não critico o governo por não confiar nessas afirmações e nessas críticas que se fazia dentro da academia. O que eu critico o governo é não ter criado um sistema de alerta próprio, um sistema de vigilância. Ok, se não se acredita na academia, nas pessoas que estão estudando isso, porque se acha que elas são suspeitas, não se acredita nas empresas de Estado, porque você está justamente querendo privatizá-las e acha que eles estão só defendendo os interesses da corporação... Bom, tudo bem, você tem que acreditar em alguma coisa, então cria um arcabouço próprio de pesquisa e de análise, de acompanhamento. Mas se não faz isso, por que então que você privatiza? Por que é que você faz a modernização do Estado? Principalmente para cortar custos administrativos. Na verdade, as duas coisas acabam caminhando paralelo: você esvazia o Ministério de Minas e Energia, os salários são retidos, corta-se muita gente… O Ministério hoje vive de consultores, consultores que, a cada ano, mudam, porque nunca se pode garantir a permanência deles. Então se esvaziou o ministério, esvaziou as pessoas que entendiam, que tinham histórico… Esvaziou, justamente, o observador independente. Na academia você não confia, nas empresas estatais você não confia, e ainda esvazia o teu observatório... É o caos anunciado. E, ainda por cima, ocorre essa divisão de poderes, isso deve ter reflexos em termos da locação de recursos… Então, eu diria que esse é o caos institucional, independente das opções energéticas. (…) Para podermos entrar na questão das opções, nós temos que entender o que foi o problema mesmo. A falta de chuva é evidente, mas o sistema… O sistema funciona e deve funcionar de forma integrada, o que quer dizer que há um despacho das usinas, mesmo em competição, que vai ser um despacho centralizado. E quem diz para cada usina como é que tem que despachar e quanto, até máquina a máquina, esse controle centralizado, é o tal do ONS. O Operador Nacional do Sistema, que é uma entidade constituída pelas próprias empresas. Qual é a idéia? A idéia é que o sistema tem capacidade de armazenamento plurianual de água, ele pode regularizar as chuvas ao longo de 4 ou 5 anos. Quando você tem um sistema operando dessa forma normal, nós não dependemos dos fluxos das águas porque nós temos os estoques das águas nas represas. Então, se um ano chove pouco, como choveu esse ano, o ano que vem vai chover mais, ou se não chover no ano que vem, chove no outro; e você não depende do tal fluxo das águas…

Aí não vai entrando naquela reserva, não queima a gordura, digamos.
Exato. Nós fomos entrando nessa gordurinha… O que é um parque hidrelétrico? O pessoal, às vezes, fica bravo comigo, mas na verdade é isso... Uma hidrelétrica é um pouco de água e muito capital. Quando você constrói um parque desse porte, com esse recurso regularizador das águas, muito capital é investido. "Ah, o Brasil tem o privilégio de rios caudalosos e é por isso que nós pudemos construir esse parque hidrelétrico". Isso é uma verdade parcial. Tem muita mentira nesse sentido. Se colocar, por exemplo, turbina nos leitos dos rios para aproveitar só o fluxo das águas, nós geraríamos muito menos energia. Ainda dependeríamos mais das águas das chuvas, seríamos extremamente vulneráveis à chuva. Como é que nós deixamos de ser vulneráveis à chuva? E como é que nós aumentamos o poder das águas gerarem energia no Brasil? Com muito capital, construindo barragens, construindo reservatórios imensos... Enfim, quando você começa a atacar os estoques das águas, na verdade, você já está consumindo o capital, porque você está consumindo aquele aterro em que a água é estocada. A água é um recurso renovável, mas a água estocada não é tão renovável assim. Nós levaremos alguns anos para recuperar os níveis dos reservatórios, não vai ser de um ano para o outro. Depois… Itaipu, por exemplo. Itaipu, apesar de ser o maior lago do sistema, não tem capacidade de armazenamento. Toda a água que chega tem que fluir. Ou verte ou passa nas turbinas. Então, determinadas chuvas só geram catástrofes, o Espírito Santo outro dia teve alagamento... Ali gera só catástrofe mesmo. Tem que chover no sul de Minas, naquela região onde tem os grandes reservatórios do sistema e esses continuam secos. Se você não der fôlego para esses reservatórios recuperarem os níveis de segurança, nós vamos entrar no que eu chamo as rotinas de apagões… Quer dizer, estamos constantemente dependendo dos fluxos das águas. E aí um ano pode ser bom, mas quando for bom é capaz de perdermos as águas, se elas caírem no lugar errado, como acontece aqui no Sul.

O volume concentrado de chuvas sobre as grandes, cidades como São Paulo, não pode ser absorvido pelas PCHs (pequena centrais hidrelétricas)?
Claro, as PCHs são uma das soluções que você também pode pensar, mas elas não vão ter esse papel regularizador. Pode até ter um papel regularizador micro-regional em algumas áreas. (…) Esse grande sistema, na verdade, é muito caro e só foi possível construir porque nós tínhamos como nos endividarmos barato, só que a um custo social muito grande porque enquanto o Estado investiu nisso, se criou esse mundo de miséria, investiu-se pouco na educação, investiu-se pouco em tecnologia. Energia era vista como essencial, a escolha da sociedade foi essa. Como é que foi se criando o sentimento de excesso de energia? É porque esse sistema foi super-ofertado. Quando Itaipu começou a operar, por exemplo, a CESP estava em pleno processo de construção das suas grandes represas. Eu me lembro de que meu pai levava a gente para passear e tirar foto daquelas águas ali do Rio Tietê... Era bonito de ver! Uma hidrelétrica, quando está paradinha, é quando está funcionando bem, porque toda a água está passando nas turbinas. Quando tem aqueles filetes de água bonitos que a gente vê, como acontece aqui no Sul às vezes, é porque você não tem capacidade de acumular a água, você está jogando energia fora. São Paulo ficou anos vertendo água porque nós éramos obrigados a consumir a energia de Itaipú. Isso quer dizer que foi criada uma capacidade de geração muito acima da capacidade de consumo e aí se começou a estimular qualquer uso possível de eletricidade. Esse é o único país do mundo em que você tem chuveiro elétrico!

É o que o prof. Goldemberg chama de comer a goiabada com colher de prata...
O que é um absurdo… Um dos defensores disso fala que "essa é uma tecnologia barata, com 15 reais você proporciona água quente para a classe mais pobre". É realmente, qualquer um pode comprar um chuveiro tipo ducha Corona. Só que aí tem um problema de sustentabilidade, ou de economia, energia em sociedade e meio ambiente… Você não está considerando todas as externalidades. O sujeito que compra aquele chuveiro, só enxerga o custo do chuveirinho. Aí realmente é barato, mas todo o custo da sociedade para produzir energia, para proporcionar energia para ele ali, e todas essas barragens que estão lá atrás para abastecer isso, ninguém conta.

Ou não conhece…
Não, mas a gente sente no bolso porque uma boa parte da nossa dívida externa é isso. Nós estamos pagando indiretamente, primeiro com inflação, agora estamos pagando com a crise. O pobre acaba sempre pagando mais quando é assim. Quando tem inflação, por exemplo, quem paga mais é o pobre. Quando se corta a capacidade do Estado de investir, normalmente quem perde é o pobre, porque o Estado, preferencialmente, acaba investindo para os pobres. Enfim, o pobre está pagando caro por esse sistema maluco, só que ele não vê. Então, quem defende chuveiro elétrico ou é um falso ideólogo ou então está sendo maldoso. Mas, você vê, quanto uso térmico de eletricidade que a gente tem nesse País!. Você vai em uma padaria tudo é térmico, a máquina de pãozinho é térmica, o capuccino é térmico, a sandubeira é térmica… Trouxemos aí uns fogãozinhos bonitos da França… A França fez o mesmo caminho, só que eles só vão pagar daqui a mil anos porque eles construíram usinas nucleares. Mas eles fizeram o mesmo erro, jogaram para daqui mil anos a conta dos erros de hoje. A nossa conta é mais curta, nós estamos pagando o que os nossos pais fizeram. (…) Você cria um sistema que é muito caro, muito acima da oferta e gera uma super oferta e toda uma demanda errada da eletricidade. Então, é esse o ponto que nós estamos.

Uma demanda subsidiada…
Isso, mas daí as coisas começam a se confundir, porque você fala: "se eu privatizo, eu posso liberar as tarifas para que elas realmente reflitam os valores econômicos". As coisas vão se misturando, a questão da instituição e a questão física da energia. Eu sempre fui a favor de mercado competitivo, mas vamos ser práticos, hoje não tem sentido, não tem condições.

Ninguém quer investir.
Como é que você vai obrigar o consumidor a assumir o risco do mercado competitivo numa situação de escassez de energia, em que as tarifas tendem a ser explosivas e as volatilidades desses preços tendem a ficar politicamente inaceitáveis?. Então, hoje o nosso problema é físico. Ficar discutindo questões institucionais, não sei se faz muito sentido. Poderíamos fazer, talvez, até uma moratória institucional com um prazo de transição até igualarmos um pouco a questão da oferta e do consumo. Nós fomos consumindo essa oferta e não fomos percebendo isso. Primeiro por causa dessa falta de informação que a ordem institucional criou, mas segundo porque nós viemos depois de muitos anos de super oferta, porque em todos a década de 1980, o sistema girou com grande capacidade. Alguns investimentos ainda foram sendo feitos, algumas obras paradas foram sendo terminadas, então não houve assim um sinal muito claro de que se estava consumindo esses estoques.

Aí em 1994, chega o plano Real, consegue controlar a inflação, aumenta um pouquinho a renda e dispara a venda de eletrodomésticos...
E aí começa a ter um grande choque na demanda, e principalmente nessa demanda maluca, nessa demanda errada. Então eu acho que a gente tem que dar uma parada e pensar quais são as opções. Primeiro, não faz muito sentido continuar a manipular os preços para justificar a mudança institucional. Eu acho que nós perdemos aí e temos que esfriar um pouco. O problema não é mais de ordem institucional… Quando você vai mudar uma ordem institucional, vai criar uma forma de otimizar o sistema, porque daí os preços estão mais próximos da realidade, se cria mais competição. Uma maior competição tende a criar tarifar mais baixas e aí você transfere uma parte desse benefício da ordem institucional para o consumidor. Aqui não vai acontecer isso, porque, como tem escassez de energia, você não vai ter reduções de tarifas, pelo contrário, você corre o risco de ter tarifas explosivas e não justificáveis. Mas você não precisa passar toda essa conta para o consumidor. Eu acho que a primeira questão é falar: "vamos fazer um moratória, sei lá, de uns cinco ou seis anos". É o tempo de criar uma transição e mudar um pouco a matriz energética e, aí sim, no próximo governo, daqui uns cinco ou seis anos, se decide qual é a opção. Porque hoje nós precisamos das empresas de Estado, com todos os malefícios que possam ter de corrupção, de excessos de obras, de corporativismo… Hoje você precisa da empresa de Estado, que tem uma percepção do risco no investimento muito mais baixo porque ela não vê a questão de rentabilidade do investimento. Só que isso inviabiliza o mercado competitivo, porque tem uma oportunidade de negócio e o investidor privado está vislumbrando aproveitar isso, mas está esperando uma rentabilidade grande. Aí o setor público vem e faz um investimento… Por exemplo, se o setor público vem e constrói Angra 3… Você matou todas as oportunidades de termelétricas a gás, no Rio de Janeiro, por uns tempos. Porque não vai ter mercado. Aí então, o gás natural para gerar eletricidade acabou nesse País por uns anos... Então, o setor público interferindo com o investimento, cria problemas com o investidor privado. Não dá para ter as duas coisas ao mesmo tempo. E, simplesmente, para depender do mercado competitivo, do investidor privado nessa situação de risco que nós estamos vivendo, você vai ter que oferecer ao investidor uma rentabilidade muito grande.

E as tarifas teriam que ser altas...
As tarifas teriam que ser muito altas. Então, será que é o momento de trazer esse custo para a sociedade? Claro que não é só esse setor da economia brasileira que está em situação precária, procurando se posicionar no mundo globalizado. Todas as áreas da economia brasileira estão querendo competir, mas nenhuma é competitiva imediatamente. Então, você vai impor custos de tarifas de eletricidade muito altos de uma hora para a outra para justificar o que? Não faz muito sentido. Eu também não sou a favor da energia subsidiada, mas hoje você vai dar um salto e tirar do bolso do consumidor uma parte ainda maior de renda, quando ele poderia estar consumindo com bobagens, mas que ajudariam a tirar o país da recessão? Eu acho que não precisava disso. Você tem opções energéticas mais interessantes, só que elas não são tão imediatas. As PCHs não vão ter esse papel de regularizar as águas, mas podem ajudar a regularizar justamente essas pontas que são criadas pelo uso errado da eletricidade. O sistema tem que alimentar toda a carga de ponta e ela é muito desbalanceada por causa dos usos de eletricidade que se faz, principalmente por causa do chuveiro elétrico. Então, a PCH pode ajudar nesse processo. São os níveis menores que podem acumular água e gerar na hora de ponta e até vender a eletricidade mais cara. Você pode vender mais caro e o sistema compra essa eletricidade mais cara porque ele também está vendendo mais caro para o consumidor. Então, a PCH, em geral, tem um papel interessante a cumprir, nesse sentido.

E as outras formas de geração?
Por exemplo, energia solar. Não falo de fotovoltaica, essa está muito longe da realidade. Vamos lá ao que é rápido: energia solar para aquecimento. Eu estive dando uma olhada nas praias daqui (de Florianópolis)... É raro ver energia solar nas casas, até em lugares em que você não tem edifícios... A energia solar poderia ser uma solução para gerar água quente. O interior de São Paulo é um dos lugares com maior insolação no Brasil e é raro ter energia solar para aquecimento de água. Todo mundo com o chuveirinho elétrico… Mas as duas grandes e boas opções que eu acho que temos são: primeiro, melhorar o aproveitamento dessas grandes represas. Bom, primeiro precisa dar fôlego para recuperar o nível de águas. Segundo, vai precisar melhorar a transferência de águas via elétrons. Não dá para transferir água do Sul para o Sudeste em forma de H2O, você não vai fazer aquedutos, como faziam os romanos, para levar água do Sul para o Sudeste. Mas você pode melhorar a transferência de água via elétrons, dando um reforço substancial nas linhas de transmissão. Todo esse sistema muito caro que nós falamos aí, o sistema hídrico brasileiro, funciona com uma eficiência impressionante, porque tem um número aí que a gente chama "fator de capacidade do sistema ou de uma planta". O que é ele? O fator de capacidade reflete o período em que o sistema está disponível em plena carga. Em plena carga, o sistema opera com fator de capacidade de 50% ou pouquinho mais do que isso. Quer dizer, você construiu um sistemão pesado que, ao longo de um ano, só opera com 50% do fator de sua capacidade. É muito dólar investido para operar com um fator tão baixo. Você teria que ganhar, aumentando os fatores de capacidade. Quando você pega os dados de 1994 para cá, o fator de capacidade subiu para 60%, mas a gente viu que não foi sustentável porque ele aumentou justamente porque se foi consumindo a água estocada. Ele não pode operar assim. Mas ele consegue operar a 60%, se melhorar as relações de transferência.

Melhorando a interligação?
As interligações.

Mas o pessoal da ONS diz que essas linhas de transmissão, que tantos geradores aqui do Sul estavam reclamando, só vão funcionar 20% do tempo...
Então… sozinho não há opção, realmente, porque vocês não tem água disponível aqui também. Isso tem que ser casado com alguma coisa mais. Aí entra também a questão das termelétricas. O sistema funciona daquela forma senoidal que a gente conhece: você tem as cheias, que começam aqui em novembro, dezembro, janeiro, fevereiro... E daí são as águas de março fechando o verão. Isso varia, às vezes até abril, e depois começam as secas e os níveis dos reservatórios começam a cair. Se puder complementar esse sistema hídrico com termelétricas, você aumenta muito a disponibilidade do sistema. Você tem uma gordura de 50% justamente. O sistema é capaz de absorver água para gerar hoje 72 gigawatts, mas na verdade opera com 30 e pouco, ao longo do ano. Então se puder aumentar a complementação com termelétricas, você pode operar com 70 gigawatts. Quando você vai tendo menos água, você vai complementando com termelétrica.

Termelétrica a carvão ou a gás? Aqui, tem reservas de carvão que podem ser utilizadas, mas e o risco ambiental?
Eu acho que está correto. Mas aí a gente tem que se antenar como é que funciona o gás. A termelétrica a gás do ponto de vista ambiental é um ganho muito grande, mas ela não é boa para isso que nós estamos querendo. O Brasil talvez seja a única realidade no mundo onde a termelétrica, para ser ótima, tem que casar com o sistema de grande porte. A termelétrica a gás, na Europa ou nos Estados Unidos, são muito competitivas, há um ganho econômico, um ganho de eficiência e uma ganho ambiental imediato porque ela substitui uma termelétrica antiga, a carvão ou a óleo. Aqui não; não queremos que ela substitua o sistema hídrico porque ele já está aí, nós queremos uma termelétrica que opere quando nós precisamos dela e que fique parada quando nós não precisamos. E o sistema está disposto a remunerar o capital para que ele fique parado. A termelétrica está lá como base de reserva. Quando você precisar, ela começa a gerar e aí você só paga o combustível que ela consome, é muito mais barato. O gás não serve para isso, porque você tem que remunerar o desenvolvimento das bacias de gás que estão lá na Bolívia, ou em Campos, ou de onde vier o gás. Vamos dizer que o GLP (gás liqüefeito de petróleo) é uma boa solução, mas aí é outro lado que a gente poderia atacar. Por enquanto, vamos atacar o certo, depois a gente tenta atacar aquele uso errado de eletricidade que estamos fazendo. Na oferta, você precisa de alguma alternativa que sirva de pulmão ao sistema hídrico. Quando o sistema hídrico pára de respirar ou perde água, você usa o pulmão. Tem que ser termelétrica a carvão, porque aí você usa a mina como o pulmão. E a mina não pode ter muita gente trabalhando, tem que ser mina mecanizada porque essa mina vai operar pouco, com 30 ou 40% do tal fator de capacidade. As térmicas brasileiras sempre operaram com fator de capacidade de 12 a 15%.

Mas as termoelétricas têm muito problema de manutenção…
Elas não têm que ser eficientes, elas precisam ser baratas porque vão operar pouco. Primeiro, elas têm que estar disponíveis quando se precisa delas, e, segundo, tem que ser baratas porque você não quer remunerar muito... Ciclo combinado, esses negócios, é tudo muito caro para não operar em tempo integral. Tem que ser barata, inclusive, para que você possa gastar um pouco mais nos controles ambientais, como é o caso da termelétrica a carvão. E aí, melhorando as linhas de transmissão, você passa a transmitir a energia da água que você tem disponível aqui no Sul, ou o carvão. Você está transferindo a água ou o carvão em forma de elétron.

Então essa é a solução: construir termelétrica?
Não faz sentido construir termelétrica a carvão aqui, hoje. É grande bobagem se não construírem as linhas de transmissão, porque você já joga a água fora. O Sul já não tem a capacidade de absorver a energia produzida aqui. Se aumentar a capacidade de oferta aqui, simplesmente você vai jogar mais água fora. Ou então, aumentar a importação da Argentina. Essa seria outra boa solução; porque o sistema argentino, com a crise econômica que eles vivem hoje, é um grande pulmão já disponível. As termelétricas já estão lá, os campos já estão desenvolvidos, os gasodutos estão lá. Mas, novamente, não faz sentido transmitir a eletricidade para o Sul, se depois você vai ser incapaz de mandar a energia para o Sudeste. Então, aumentar a capacidade de transmissão do Sul para o Sudeste é a grande, a primeira grande opção que nós temos. Aí você viabiliza termelétricas a carvão no Sul como complementação térmica. Ou seja, tem que mudar o conceito de uso do carvão, tem que ser usinas baratas, mecanizadas. Não pode ter muita gente na mina, porque, se tiver muita gente, você não pode parar a mina e mandar as pessoas embora. Além disso, tem que ter linhas de transmissão para trazer energia da Argentina e linhas de transmissão para o Sudeste. E aqui tem um paradoxo: o ambientalista não gosta de linhas de transmissão, porque elas são feias; mas essa talvez seja a opção, do ponto de vista ambiental, mais barata, do que ficar construindo grandes reservatórios por aí. Não precisa aumentar mais a capacidade de geração, não precisa construir novas grandes hidrelétricas nesse País, você aumenta a disponibilidade de 50 para 60%, só melhorando a transferência de eletricidade de um lugar para o outro.

Essa é a melhor alternativa?
Essa é a opção mais barata e se teria um prazo de uns 5 anos, eu acho, para planejar realmente grandes obras. E as pequenas centrais, não as PCHs, mas o que a gente chama de MCHs, (Médias Centrais Hidroelétricas) com capacidade de 100, 200, 300 até 1000 megawatts, essas estão saindo, o investidor privado está achando isso competitivo. Tem mais de 100 obras com essa escala sendo feitas por aí. Então, na verdade, não se parou completamente de fazer investimento, mas, se parasse, só melhorando a linha de transmissão, você já teria um ganho de 10% no sistema como um todo. Só melhorando as transferências. Como as obras que fazem sentido ainda estão saindo, você tem aí 10 anos de prazo tranqüilo para melhorar a capacidade de oferta. E aí se pode atacar a demanda. Também existe uma série de oportunidades de conservação de energia, de substituição de lâmpadas... Enfim, esse racionamento demonstrou aí o quanto pode ser feito nesse sentido.

Tem que atacar o desperdício também…
Existe desperdício, mas o próprio racionamento vai provar que isso não é tão evidente assim. As pessoas cortaram 20% no consumo, mas foi meio na marra, meio por amor à pátria. Bastou afrouxar um pouco e uma boa parte desse desperdício está voltando. Mas isso é uma política de longo prazo, eu diria. Existe alguma coisa mais imediata, que se não for feita como se fosse política pública, vai acabar acontecendo, mas, de novo, no longo prazo. Se o planejamento for visto como uma oportunidade de política pública, pode ser feita uma mudança rápida na matriz, através do uso do gás natural, que já está aqui. Veja, ninguém no mundo constrói um gasoduto sem ter consumidor e sequer tínhamos as reservas. Agora nós temos reservas na Bolívia, mas continuamos não tendo o consumidor. Por isso que ficam querendo construir bobagem, como termelétricas a gás natural, para tentar consumir esse gás. Mas se puder levar esse gás para o uso final lá e transformar esse consumo de eletricidade para gás natural, onde as infra-estruturas já estão disponíveis, você tem uma redução muito grande no consumo da eletricidade.

Onde? Em que setor?
Por exemplo, pega a região de São Paulo. Tem toda a área da ComGás… Sem imaginar as áreas que precisariam expandir, que realmente é muito limitada, mas na própria área da ComGás, tem, pelo menos, uns 30 Shopping Centers que não usam gás natural. Tem a própria Universidade de São Paulo… e nós estamos em cima do anel de distribuição! A ComGás tem um anel de alta pressão que cruza as marginais e ninguém usa gás natural. Só nessas vias marginais, devem ter uns 20 Shopping Centers, tem o campus da Universidade de São Paulo, pelo menos uns 10 hospitais, vários edifícios comerciais de grande porte… Ninguém consume gás natural e 40% do consumo de eletricidade de toda essa turma aí é ar condicionado. A escolha feita é a seguinte: queimar o gás numa termelétrica, que, na melhor das hipóteses, vai ter 60% de eficiência. Quer dizer, 40% da energia química do gás natural que vem da Bolívia, e o consumidor está pagando caro, vai ser perdida. Aí, você produz eletricidade na termelétrica, coloca nas linhas de transmissão, que vão ter uns 5 ou 10% de perdas… Bom, 50% daquele gás se perdeu, então os outros 50% tem cobrir o que se perdeu. E aí, você bota a eletricidade nessa demanda errada: no seu chuveiro elétrico, na sua geladeira elétrica, ou nos fornos elétricos, ou no ar condicionado elétrico, ou outros equipamentos elétricos… Realmente, alguns até são eficientes, quase 100%… Quando o pessoal fala em conservação de energia está falando em aumentar ainda mais a qualidade desses equipamentos. O que eu estou falando é que, independente da qualidade desses equipamentos, alimentá-los com eletricidade é que está errado, porque você está usando eletricidade, que é uma energia nobre para ser transformada em calor ou frio. Isso é ridículo do ponto de vista termodinâmico. S você puder substituir, essa é a melhor opção. Qualquer ganho de eficiência do equipamento em si não faz sentido quando existe 50% de perda ao longo da cadeia, desde a termelétrica até o equipamento. Tem uns 400 mil consumidores potenciais de gás natural, que não consomem o gás para gerar água quente, é só para o fogãozinho dele. Isso é absurdo. O gás já está ali e o pessoal está querendo estimular o pior uso possível para ele, que é gerar eletricidade, quando o ganho que o gás pode proporcionar para esse País é, justamente, alterar a matriz energética. Que foi criada por causa daquela distorção na década de 1970, em que se gerou eletricidade demais e obrigou os consumidores a consumirem eletricidade demasiadamente. Então, nós não fizemos a nossa lição de casa que os países mais desenvolvidos acabaram fazendo, até mesmo alguns deles não fizeram…. Nós estamos usando eletricidade da maneira errada. Hoje nós não temos uma crise de energia, nós temos uma crise de eletricidade. E, portanto, não temos eletricidade para alimentar esse uso errado de eletricidade. Ao mesmo tempo, nós estamos jogando fora o gás da Bolívia, como no Brasil, na Bacia de Campos: queimando o gás porque ainda não tem mercado.

E importando petróleo para consumir nos veículos automotores…
E importando petróleo... Sem dúvida. Eu não diria que as duas coisas sejam tão diretamente paralelas assim, mas eu diria até o seguinte: você poderia hoje, com o gás natural, estar substituindo o máximo possível de outros energéticos e liberando o Brasil para, eventualmente, até exportar petróleo por conta da "gaseificação" da economia. Quer dizer, a grande opção energética que o País tem hoje, é o gás da Bolívia; é muito gás, que não tem mercado. Não há outra opção.

E o custo em dólar? Não está assustando o consumidor?
Essa passa a ser sempre a questão: "é, mas essa energia é importada em dólar". Mas toda a energia tem que ser importada em dólar, todas elas são importadas... até a água. Você não paga pela água, mas você paga pelo capital, como eu falei, 70% é capital, os outros 30% são água. O combustível é dólar, mesmo o petróleo nacional produzido no Brasil, se você não remunerar em dólar, você não vai atrair investidor nenhum, sequer a própria Petrobrás vai sustentar os seus próprios investimentos. O problema não é esse. O problema é como é que você gera a energia... Ok, isso não é problema, toda energia tem que ser em dólar. O segundo problema: "ah, estamos transferindo dólar para a Bolívia, esse é que é o problema...". Isso também não é o problema. Ainda bem que nós estamos mandando alguma riqueza econômica para a Bolívia e abrindo oportunidade para os bolivianos, eventualmente, daqui a 10 anos, não estarem na mesma miséria que estão hoje e nós não estarmos importando bolivianos. Porque hoje, nós já estamos importando os bolivianos... Já tem toda uma comunidade de bolivianos ilegais vivendo em São Paulo e trabalhando como mão-de-obra escrava... Isso é terrível. Nós vamos herdar aqui o mesmo problema que a Europa tem com o norte da África, se nós não criarmos opções de transferência de renda. O problema não é esse, o problema é: nós temos que gerar caixa para podermos pagar isso, e para fazer caixa tem que ter inteligência... Se você muda esse conceito de base, você gera toda uma série de inovações, de novos equipamentos, de tecnologia, que o boliviano nunca vai ser capaz de gerar, porque as universidades de lá não são capazes, não tem sequer capacitação tecnológica, sequer tem financiamento de tecnologia. O consumo de gás na Bolívia é irrelevante para o montante que existe. Então, se a gente puder trocar o gás por tecnologia, por equipamentos a gás, você está pagando o gás com dólar também, porque essa tecnologia vai ser remunerada em dólar. Essa é a grande opção de desenvolvimento econômico que nós temos, gerando empregos na indústria do gás... As termelétricas, novamente, não cumprem essa função. Da termelétrica é tudo importado, até as chaminés das termelétricas têm sido importadas, as turbinas, tudo vem prontinho de fora. Isso não gera tecnologia, não gera emprego, não gera nada. Aí, realmente, começa a ter problema na balança de pagamento, porque estamos importando combustível e importando a tecnologia, importando os empregos, vamos gerar emprego lá fora para produzir a turbina a gás… Enquanto, se alterar o uso do gás, a gente vai estar gerando emprego aqui, porque esses equipamentos não estão 100% disponíveis no mercado internacional. Ainda existe um espaço para as empresas e para novos negócios no Brasil. E olha o potencial exportador que tem na América Latina, na Ásia, na África, lugares onde existem reservas de gás imensas e ninguém usa gás porque não tem infra-estrutura, porque não tem como consumir o gás, não tem os equipamentos, não tem as tecnologias... É aqui que nós deveríamos focalizar as nossas atenções, usando o recurso natural boliviano. Ele está lá, é capital de risco baixo, mas você precisa remunerá-lo em dólares e uma boa parte desse dólar vai voltar para cá. Porque eles vão importar tecnologia da onde? No melhor dos casos, eles vão importar tecnologia para fomentar uma pequena industrialização, para melhorar o padrão de consumo da classe média. Esse é o melhor dos casos. No pior dos cenários, eles vão importar porcaria: Mercedes Benz, coisas fúteis. De qualquer forma, podemos ser nós que iremos exportar as bobagens para eles. Lá, na Bolívia, a indústria brasileira pode ser competitiva, até por causa de questões de logística. A importação do Estados Unidos é difícil, eles não tem portos, tem que atravessar os Andes... Então, se não formos competitivos ali, fechemos o País e vamos embora.

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