Entrevista: A Energia do Átomo

Outubro 2001

Frederico Firmo de Souza Cruz, físico, professor doutor em Física Nuclear do Departamento de Física (UFSC)

O assunto principal é energia nuclear

De todas as energias, parece que a energia nuclear é a mais "abstrata" para a maioria das pessoas…
Eu diria que a única coisa necessária para gerar energia elétrica é girar uma turbina. Você pode fazer isso de duas maneiras. No primeiro caso, em usinas hidrelétricas: a água do reservatório ao passar em alta velocidade pelas pás das turbinas faz com que elas girem. Isto ocorre por exemplo em Itaipu. A segunda maneira ocorre em termoelétricas ou usinas nucleares. Nestas usinas, a água é aquecida gerando vapor que, sob alta pressão, força as pás e faz girar as turbinas. O giro das turbinas aciona o gerador elétrico, transformando a energia mecânica do movimento das pás em energia elétrica. De uma maneira mais simples: quando não se trata de usinas hidrelétricas, o que precisa é uma caldeira para gerar vapor. Uma caldeira que pode ser a carvão ou pode ser nuclear. Uma reação nuclear do tipo fissão é semelhante ao que muita gente viu e fez em Química no nível secundário. Em laboratórios de química pode-se observar que certas reações químicas, onde duas substâncias se juntam ou se separam, geram energia e, se realizadas em meio aquoso, aquecem a água… A reação nuclear é a mesma coisa. Quando você fissiona um núcleo , ele se rompe em dois pedaços como numa explosão de uma granada. Os pedaços se separam em alta velocidade, isto é, com muita energia. Se eles estão num meio, eles colidem com outras partículas, cedendo energia para este meio, ou seja, eles agitam esse meio e isso aumenta a temperatura. Se colocar água em contato com este meio quente pode-se gerar vapor. O processo de fissão ocorre também nas bombas nucleares. A fissão, em geral, ocorre quando um núcleo de um elemento físsil (combustível nuclear) absorve nêutrons. Por outro lado, quando ocorre a fissão, um núcleo se divide em duas partes e libera mais dois nêutrons, que por sua vez podem ser absorvidos por outros núcleos próximos, gerando com isso mais fissões; isto é, uma reação em cadeia. Para controlar esta sucessão de fissões e tornar a reação programada, alguns destes nêutrons têm que ser retirados do processo. Nos reatores nucleares, as barras de grafite são introduzidas com esta finalidade.

É a grafite que vai delimitar essa reação?
É. Você coloca essas barras de grafite e elas absorvem os nêutrons, então diminui o número de nêutrons que está ali dentro e isso evita que o processo prolifere tanto, permitindo o controle do número de fissões.

É a explosão programada que o Sr. falou. E a bomba?
Sim, deve-se truncar o processo. Na bomba nuclear simplesmente deixa-se o processo continuar descontroladamente. Portanto, voltando à questão energética: a idéia básica de um reator nuclear é que a reação gera energia que é utilizada para aquecer a água e essa água aquecida é utilizada, sob pressão, para girar uma turbina. É o mesmo mecanismo com o carvão nas usinas termoelétricas. Com o carvão você gera água quente que gera o vapor e gira a turbina para produzir a energia elétrica.

Não é uma energia muito cara para, digamos, aquecer água e girar uma turbina, gerando energia elétrica?
Um dos grandes trunfos dos defensores da energia nuclear é que ela seria mais barata do que as outras. Isto é, depois do investimento inicial, a manutenção e o tempo de uso ao final seriam lucrativos. Isto dentro do ponto de vista de determinados economistas que só pensam em custos e lucros… Dá para fazer análise de custos técnicos e chegar a conclusão: "ah, isso dá lucro". Porém, por ser uma coisa muito perigosa, é muito delicado deixar isso na mão de economistas do lucro. Os perigos não podem ser superdimensionados nem subestimados. Nenhum dos extremos. Existe um controle bastante grande e muito cuidado. Por exemplo, embora possa acontecer, o melt (a fusão do interior de um reator), é uma coisa bastante difícil. Apesar de ser bastante difícil de ocorrer é extremamente perigosa porque, se acontecer, é uma coisa muito dramática mesmo, algo como aconteceu em Chernobyl e em outros lugares. No entanto, eu quero chamar a atenção para outros perigos que não são tão visíveis nem catastróficos, mas fazem parte do cotidiano de uma usina. Tem um caso famoso, na Irlanda. Quando se analisam as condições de segurança de uma usina nuclear... Por exemplo, a região do reator onde a reação nuclear ocorre, em geral, é lacrada. A água que entra em contato com o combustível nuclear não passa pelas turbinas, ela vai aquecer um reservatório que, por sua vez, aquecerá a água externa a ele. Portanto, em princípio, os dejetos radioativos não saem do interior do reator, mas em algum momento esse material radioativo tem que ser descartado. Aí começam os problemas sérios. Existem materiais radioativos de vários tipos. Alguns emitem radiação por pouco tempo, outros por muito tempo. Então, se faz a separação desses materiais e, claro, deve-se tomar uma série de cuidados com relação a isso. Obviamente, existe sempre a questão se foram tomados mesmo esses cuidados ou não. Mas vamos supor que sim. Quer dizer, vamos supor que estejamos numa situação de funcionamento normal e ótimo da usina. Mesmo assim pode-se ter problemas . Por exemplo, parte dos resíduos radioativos é jogada na natureza. Isto é feito de forma planejada, porém nem sempre com sucesso. A idéia por trás dos cálculos que se faz para essas coisas, muitas vezes, é assim: se eu jogar esse material radioativo e diluir numa baía, com tantos quilômetros quadrados, etc, esse material vai diluir e a radioatividade que vou ter é a mesma radioatividade natural que nós temos, porque nós sempre estamos sujeitos à radioatividade natural. No entanto, nem sempre esta idéia de diluição funciona. Na Irlanda aconteceu algo desse tipo. Existem alguns elementos radioativos que, na verdade, não se diluem dessa forma. Eu estou sem os dados, mas acho que foi o Potássio… Ele terminou se fixando em determinados elementos que têm Cálcio. Nessa região da Irlanda, onde ocorreu isso, existem algumas algas que eram usadas pelos pescadores para fazer farinha e pão. O que ocorreu é que, em vez de esse material se diluir, ele acabou se concentrando nessas algas.

Ele acabou se agregando a outros elementos naturais…
É, porque ele reagiu mais fortemente com determinadas coisas. Então, aquele cálculo sobre o tamanho da baía não serviu para nada porque o material radioativo acabou reagindo com outros materiais. O que aconteceu é que teve um aumento estúpido de câncer no intestino, no estômago… Veja que isso é um efeito que ocorreu não porque houve uma explosão, não por causa dos maiores perigos… Às vezes, se coloca muito a questão da possibilidade da explosão, da fusão do reator, síndrome da China… Às vezes, se focaliza muito isso e se esquece o cotidiano. Mesmo com o funcionamento normal e ótimo de uma usina, você tem perigos desse tipo. São essas coisas que me deixam um pouco temeroso em relação aos reatores nucleares. Então, é uma coisa que, talvez, do ponto de vista dos economistas, custos e cifras, etc, esteja muito bem. Do ponto de vista dos técnicos ou daqueles que fazem todos esses cálculos de confiabilidade, seguridade, talvez também esteja tudo muito bem. Porém, eu não acho que se tenha o total controle sobre isso. Mesmo numa situação usual. É uma tecnologia bastante delicada.

Como se descobriu essa energia do átomo? Imagino que, à época, até mesmo porque já se usava muito o carvão, não se descobriu isso porque estava se buscando uma fonte energética…
Não, as pesquisa não pretendiam resolver um problema imediato. Na década de 30 e 40, havia um trabalho na Universidade de Roma, onde pesquisadores estudavam o núcleo. Já se conhecia o núcleo… Um átomo tem elétrons ao redor dele e, no interior, tem um núcleo que é constituído de prótons e nêutrons. As reações nucleares se dão no interior do núcleo e elas são muito mais energéticas do que reações químicas que ocorrem nas camadas mais externas do átomo, onde se encontram os elétrons. Nesta época, esse pessoal de Roma pensava poder criar novos elementos químicos ou transformar elementos químicos em outros. Isso é quase como o velho ideal alquimista de transmutar elementos em ouro... Quer dizer, pretendia-se aumentar o conhecimento sobre os núcleos e, quem sabe, se conseguiria criar novos materiais que talvez fossem úteis. Estes físicos descobriram que se jogassem nêutrons lentos, esses nêutrons poderiam ser capturados pelos núcleos. Criou-se então a expectativa de que, talvez, esses nêutrons criassem núcleos maiores ou átomos maiores, mais pesados, cujas propriedades químicas poderiam ser mais interessantes e tal. Este foi o começo da descoberta da fissão nuclear. Este período foi muito interessante e confuso. Muita gente achava que realmente tinha descoberto átomos mais pesados. Esse trabalho era feito por físicos e químicos que separavam e tentavam estudar o resultado dessas reações. No começo não se sabia exatamente o que era e se pensou que tinham formado um átomo mais pesado. Alguns até deram nomes, como ekachumbo, quer dizer, um chumbo mais pesado… Tinha uma química de Berlin, a Ira Noddack, que deu uma "dica" na direção correta, mas ninguém deu bola. Mais tarde, Otto Hann e a Lisa Meitner, que trabalhavam na Alemanha começaram a desconfiar que, na verdade, não estava havendo um aumento no sistema, mas sim que estava se separando, se dividindo o núcleo. Então, a Lisa Meitner e um sobrinho dela, o Otto Fritsh, descobriram que, na verdade, os núcleos se separavam em dois outros menores, isto é, que ocorria a fissão. Niels Bohr quando soube deste resultado disse algo como: puxa, como nós falamos bobagem durante tanto tempo… O Bohr fez, então, um modelo muito simples da fissão baseado na gota líquida. Estudos anteriores sobre a energia interna dos núcleos indicavam que os núcleos tinham um comportamento semelhante ao de uma gota de água. Isto é interessante, pois o núcleo, essa coisa que parece tão complicada para as pessoas, às vezes, se comporta como uma simples gota líquida. Bohr já tinha estudado gotas líquidas eletrizadas. Nestes estudos ele havia aprendido que, quando se colocava carga elétrica demais, ela terminava se rompendo, ou seja, havia uma determinada carga crítica, a partir da qual as gotas se fissionavam. Com isto em mente, Bohr imaginou que o excesso de nêutrons, causado pela captura, teria um papel semelhante ao do excesso de carga, isto é, desestabilizaria o núcleo fazendo com que ele se fissionasse. Seguindo esta linha de pensamento, Bohr calculou o número de partículas ou "a massa crítica" que levaria à fissão. Quer dizer, a massa crítica funciona com um ponto de saturação a partir da qual o sistema se rompe. Então, ele calculou, pela primeira vez, a fissão e calculou também a energia com que essas partículas sairiam. Logo a seguir, se conjecturou a possibilidade disto como fonte de energia. Também se descobriu que, da fissão de alguns núcleos, saíam dois núcleos menores e dois nêutrons e que isso poderia gerar uma reação em cadeia, visto que, se os dois nêutrons fossem capturados por outros 2 núcleos, gerariam mais 4 nêutrons que se capturados por outros 4 núcleos gerariam mais 4 fissões e mais 8 nêutrons e .....(boom). Alguns começaram a pensar num reator de energia, mas o mundo estava em guerra e pensar na bomba não foi muito difícil. A primeira pilha atômica foi feita pela equipe de Enrico Fermi, e com o esforço de guerra se trabalhou em duas linhas: na bomba e nos reatores.

Mas na bomba não tem esse mecanismo de controle da reação em cadeia…
Uma bomba nuclear não tem um mecanismo de controle e precisa de um gatilho… Numa bomba, muitas vezes, você coloca material físsil separado em porções abaixo da quantidade crítica, o que não gera a explosão. Com um mecanismo que funciona como gatilho, você aproxima, isto é, junta o material fazendo com que chegue à massa crítica e a reação em cadeia gera a explosão.

Uma das imagens mais marcantes para a humanidade é aquela foto do cogumelo atômico sobre Hiroshima…
O cogumelo pode aparecer também com bombas químicas. A forma de uma nuvem do tipo do cogumelo depende do tipo de ondas de choque, de pressão e de temperatura geradas pela explosão. A explosão gera uma quantidade muito grande de energia num intervalo muito pequeno de tempo e de espaço. Então, saem partículas com energias muito altas gerando temperaturas muito elevadas que formam uma onda de calor muito intenso… A alta temperatura surge da colisão das partículas umas com as outras em uma velocidade muito grande. Se você tem partículas com energia muito grande, elas vão ceder energia para outras e outras e outras e isso vai se espalhar. Mas isso não se dá da maneira como a temperatura usual. Uma explosão nuclear se dá numa forma violenta e vai criando uma onda de choque, tem aumento de temperatura, variações de pressão que criam ventos fantásticos, ondas de calor… isso vai destruindo tudo. No filme The Day After, há uma simulação da explosão nuclear onde você vê as janelas quebrando. Isso acontece com qualquer explosão, mas na explosão nuclear isto acontece de forma muito mais violenta. Mas, além da destruição imediata, o problema maior vem depois com as substâncias radioativas que são subprodutos da explosão e continuam emitindo radiação ionizante.

Qual é o efeito dessa radiação?
Os efeitos biológicos da radiação nuclear são devastadores, mas o mecanismo não é muito diferente da radiação solar. Quando a gente fica morena pelo sol, o que acontece? O sol bate na pele, os fótons de luz são absorvidos por determinadas moléculas e essas moléculas soltam determinadas substâncias que são vasodilatadoras, por isso a pela fica vermelha. Se você abusa do sol as substâncias podem disparar mecanismos enzimáticos e causar lesões. No fundo, o mecanismo básico é que a radiação, seja nuclear ou solar, ativa uma reação química ou biológica, cujos resultados podem ser de queimaduras a mutações. A radiação nuclear é de energia maior e por isto tem uma capacidade maior de ionizar, isto é, transformar átomos neutros (sem carga elétrica) do organismo em átomos carregados. Isso faz com que esses átomos se tornem muito mais ativos quimicamente, gerando mais reações químicas no interior do corpo. As radiações ionizantes são mais perigosas por isso. Elas podem, por exemplo, quebrar cadeias de DNA, o que pode ou não gerar câncer… Alguns destes efeitos dependem da quantidade de radiação que você toma, mas existem estudos sobre os efeitos de doses pequenas de radiação. Numa explosão nuclear, a quantidade de radiação é muito acima do que nosso organismo pode agüentar. Em acidentes radioativos, como o de Goiânia, algumas gramas de césio (elemento radioativo) geraram um acidente de grandes proporções. As pessoas que tiveram contacto direto com o material radioativo ou morreram ou até hoje sofrem as seqüelas...

Uma questão que foi levantada com os atentados nos Estados Unidos é o nível de proteção das usinas nucleares. Existe risco de explosão se um avião for jogado sobre uma usina?
Acho que é possível. Uma vez, o prof. Pinguelli Rosa (Coppe-UFRJ) fez uns cálculos sobre a hipotética queda de um Boeing sobre uma das usinas de Angra. Neste cálculo ele fez o dimensionamento das proteções do concreto, etc… Eu não me recordo dos detalhes, mas acho que se fizerem alguma coisa parecida com o que fizeram com o World Trend Center, a usina não agüenta. Eu não tenho os cálculos, não posso afirmar, portanto, só estou fazendo uma especulação.

E o risco de contaminação com pequenos pedaços de material radioativo? O próprio prof. Pinguelli Rosa, recentemente, alertou que seria muito mais simples promover uma contaminação silenciosa, transportando material radioativo numa maleta e espalhando isso numa cidade… Isso é bem factível?
Infelizmente, acho que sim. É um dos problemas dessa tecnologia… A radioatividade existe na natureza, mas o que o homem fez foi concentrar isso em determinados locais numa quantidade absurda. Isto, unido aos perigos inerentes da tecnologia, faz com que sejam necessários muitos cuidados de segurança. Essa é uma das outras razões porque não gosto de reatores nucleares. Um grupo francês fez, há algum tempo, uma análise sobre o que seria necessário para se ter segurança total. Este grupo chegou à conclusão que seria necessário transformar o Estado num Estado policial. Quer dizer, seria preciso tanta coisa que iria tolher as liberdades civis. Isso é um outro impacto. É delicado também … É muito delicado não saber, por exemplo, em que mãos está essa tecnologia, tanto em termos de nações, quanto de grupos…

Quais são os elementos usados normalmente num reator nuclear?
Tem o urânio, o tório… O tório, por exemplo, é um elemento que dá prá fazer um reator mais limpo. Existiu na década de 60, no Brasil, um grupo que começou a trabalhar com isso, mas não foi em frente. Segundo físicos mais antigos pressões diversas pararam este trabalho …

Pressões em favor da tecnologia alemã que viabilizou o Complexo de Angra?
Foi antes do acordo Brasil-Alemanha. Parece que as pressões tinham origem nos Estados Unidos. O Brasil tem, até hoje, um problema com a Westinghouse, que é aquela empresa de um dos reatores de Angra, que tem tecnologia americana. Na verdade, esses reatores da Westinghouse têm problemas e parte do contrato não foi cumprido, o Brasil tentou acionar, mas os Estados Unidos joga pesadíssimo. Ainda com relação à pesquisa nuclear no Brasil, há muitos anos se tentou fazer física de nêutrons. Esta física é necessária para o desenvolvimento de reatores e também, é claro, para a bomba. Houve também pressões fortes contra estas linhas de pesquisa… É uma coisa delicada mesmo. Eu não sei os detalhes, pois isto apenas me foi colocado em conversas informais com físicos da época. Eles me passaram a idéia de que as pressões foram muito fortes em alguns casos ou se jogou mais dinheiro em outras pesquisas, atraindo pesquisadores para outra direção. Mas, em resumo, terminou-se comprando um reator da Westinghouse, ele veio com problemas, aí se tentou acionar…

O Sr. está falando de Angra I…
De uma das usinas, não sei qual delas exatamente tem esse reator. Parece que as usinas alemãs também têm alguns problemas… As pessoas, às vezes, falam que o Brasil comprou usinas obsoletas ou antigas. Talvez fosse melhor assim, pois em termos de tecnologia nuclear, é melhor ter uma que foi muito testada do que uma que você fica colocando algum mecanismo novo, alguma coisa nova… Se não se faz o exame específico de cada um desses detalhes, pode ser que aquela peça nova estrague todo o restante. É a mesma coisa que colocar uma peça nova num carro velho. Às vezes, ela termina quebrando o restante porque são coisas diferentes…

O Brasil precisava de energia nuclear?
Acho que não. Minha tese é que, se tivéssemos um grupo de pesquisa em reatores atômicos desde a década de 60, teríamos quarenta anos de pesquisa em reatores. Com isto teríamos pesquisa e conhecimento suficientes para tomarmos decisões mais independentes. Isto é, não necessitaríamos ficar nesta eterna dependência da tecnologia dos outros e teríamos tempo para ver se isso é viável ou não é. Obviamente, estou falando do caso ideal, onde a posse deste conhecimento seria interessante…No entanto, com tanto sol e tantos rios e tantas usinas hidrelétricas, a dependência do Brasil com relação à energia nuclear seria muito pequena e, talvez, desnecessária. Eu vejo, porém, que esse governo está destruindo a matriz energética do País. Eu acho que o Brasil tinha uma matriz energética bastante boa que poderia ter evoluído, também poderia se usar mais o sol... Isto é, podia ter se investido bastante na pesquisa de energia solar, álcool, biomassa, etc. Em resumo, eu não acho muito interessante a energia nuclear, mas acho importante que o Brasil tenha conhecimento e grupos de pesquisas em energia nuclear. Acho que esta tecnologia até pode ser útil, em caso extremo de altíssima necessidade. Ter algo assim disponível… Não podemos esquecer que, em algumas regiões do planeta, alguns países precisam desta energia nuclear. O Japão, por exemplo.

Questionaram até a estrutura do solo ser adequada porque diziam que Angra significa…
"Pedra podre". Eu não sei se é exatamente isso… O Brasil tem a mania de subestimar a sua própria capacidade. Eu acredito que tenham feito estudos geológicos sérios, mas não posso deixar de pensar que a especulação, o dinheiro e as empreiteiras podem estar por trás disto tudo. Quando há lucro, há perigo… Por isto, eu digo que é muito delicado ter lucro com uma coisa desse tipo. Esse tipo de tecnologia não pode estar na mão privada. Digamos assim, se o lucro dita mais alto pode-se esquecer os estudos e relatórios ou pode-se pagar por outros relatórios, etc… Isso pode ter acontecido. Eu já vi muito na imprensa sobre isto, muita gente séria já fez essa análise e apontou para essa direção. Então, eu tenho razões para acreditar que existem problemas no terreno.

Agora, em setembro, somente quatro meses depois de ocorrido, se noticiou que vazaram 22 mil litros de água radioativa do Complexo de Angra. O acidente teria ocorrido por falha humana porque os operadores não cumpriram os procedimentos normais de controle da temperatura e da pressão da água do reator e a água radioativa vazou para um tanque de contenção interno.
Essa é uma discussão muito importante porque eu acho que isso faz parte de uma tradição elitista e autoritária … Quer dizer, para muitos no país existem os que sabem e o resto que não sabe e nem precisa saber… Essa é uma das coisas mais delicadas da relação entre ciência, tecnologia e sociedade. Esse autoritarismo meio latente de quem detém o conhecimento... Este assunto de fundo mais geral tem sido motivo constante de debate na cidade de Angra exatamente por causa da existência da usina… As pessoas têm que ser esclarecidas. Os chamados "técnicos" não têm o menor direito de dizer que não deveriam ter esclarecido a população porque o vazamento foi na área de contenção interna. Independente do local do vazamento, as pessoas têm que saber. A desculpa que não queriam alarmar a população é arrogante e mentirosa. Se eles tivessem feito um bom trabalho de explicação sobre os reais perigos de uma usina, as pessoas poderiam entender o significado de área de contenção interna. A população tem o direito de acompanhar todo o processo, pois lhes diz respeito. Existem ainda outras questões de acompanhamento. Por exemplo: estão fazendo o acompanhamento de toda a população de Angra para monitorar os níveis de radiação? Existe um programa desse tipo? Quais são os outros programas de segurança? Eu não sei, mas eu temo que, inclusive a deterioração de outros programas de medicina preventiva no Brasil e de fiscalização, fruto deste descaso com o serviço público, tenham também seus efeitos e conseqüências na fiscalização e acompanhamento de algo tão delicado. Por exemplo, eu soube recentemente, através de um físico da Universidade Federal Fluminense, que, em Goiânia, o lixo radioativo não está sendo bem tratado. Ele esteve recentemente lá, coletando amostras do local e analisando o lixo radioativo. Ele aponta alguns problemas nesses dejetos. Eu não sei se eles estão monitorando e tomando todos os cuidados necessários. Não sei se tem gente suficiente para fazer esta monitoração e nem se estão preparando gente para isto. Este é mais um caso que deve ser investigado e tratado com seriedade pela imprensa e deve ser divulgado de forma adequada para a população. Uma boa divulgação não causa pânico, mas sim esclarece e instrumentaliza as pessoas a exigirem providências do poder público. Não tem justificativa reter essa informação. As pessoas têm o direito legal e constitucional de saber isso. Quando se fala sobre estes assuntos é comum tratar essas questões como assuntos apenas para especialistas. Obviamente os especialistas são importantes, mas a população pode, deve e tem o direito de ser informada e, em alguns casos mais específicos, mais do que apenas informação é necessário uma formação mais específica, vide o caso da população de Angra e Goiânia.

Em princípio, segundo as informações oficiais, a água radioativa ficou apenas no tanque de contenção interna. Quais são os riscos se essa água vazou para o ambiente externo?
Aí é que está… A total falta de informação dá nisso. Por exemplo: o que vazou? Esse tanque de contenção interna era o que: era onde filtrava os elementos mais radioativos ou menos radioativos? Ou será que vazou para o tanque interno mas depois dessa filtragem? Eu não sei.

São riscos absolutamente distintos?
Absolutamente distintos. Se houve vazamento para uma região antes da filtragem, então o material pode ser deslocado para um local teoricamente adequado e depois ser tratado como dejeto. Outra coisa que eu também não sei é onde estão sendo jogados os dejetos…

Existe algum tipo de reutilização desses dejetos?
Não… Onde poderia se aproveitar esse lixo nuclear? Tem alguns subprodutos dos reatores, como césio e outras coisas, que podem ser utilizados para terapia na medicina nuclear. Mas não necessariamente como subproduto dos reatores nucleares. O que é a radioatividade? Um elemento vai se transformando em outro… Existe a radiação gama, onde ele perde somente energia, mas existem as outras radiações… Então, um elemento se transforma em outro que pode não ser radioativo, mas ele já não tem as mesmas propriedades. Não tem sentido reaproveitar porque ele já é outra coisa… E o problema é que essas coisas, algumas vezes, emitem radiação por milhões de anos…

O Sr. falou do processo de fissão, que é a divisão do núcleo, e o processo de fusão nuclear?
O processo de fusão ocorre quando dois núcleos se unem, se fundem, formando um núcleo mais pesado. A idéia básica é a mesma, isto é, obter energia a partir de uma reação nuclear. Quando o átomo do elemento é muito massivo (por exemplo: o urânio é constituído por 235 partículas nêutrons e prótons), ele tende a gerar energia quando se rompe, ou seja, se fissionam e liberam energia. Por isso são denominados núcleos físseis. Quando os átomos são menores, a tendência é oposta: quando eles se fundem formando um elemento mais pesado, eles o fazem liberando energia. Para fazer com que os núcleos se fundam é necessário criar um ambiente onde um conjunto de núcleos colida, batam uns nos outros possibilitando a fusão. É algo semelhante a você chacoalhar uma caixa cheia de bolinhas de massa. Várias delas grudariam formando uma bolinha maior. Isto é feito em reatores a plasma. Alguns destes reatores, chamados Tokamaki, tem o formato de um toro (pneu). No interior deste toro, elementos como deutério e trítio, parentes do Hidrogênio, são guiados pelos campos magnéticos elétricos para regiões que maximizam as colisões e as reações de fusão e eles se transformam em Hélio. Quando isto ocorre há liberação de energia. Mas é um processo difícil de controlar porque quando há liberação de energia os átomos tendem a ceder energia para os vizinhos que podem escapar da região que maximiza as reações. Isto implica que há uma briga constante para estabilizar este processo … Até hoje não se conseguiu estabelecer um regime estável para gerar energia desta forma. Eu digo que é como se você tivesse um cobertor curto demais. Se você cobre o pé, descobre a cabeça; se cobre a cabeça, descobre o pé… Fica essa briga. (risos) É um sistema chamado de não-linear, cujo equilíbrio é muito difícil. Vários países pesquisam, mas não se conseguiu até hoje… Essa seria uma energia mais limpa, embora ainda tenha liberação de nêutrons.

O resultado seria uma radioatividade mais baixa?
Nesse caso não temos dejetos. A radioatividade vai se restringir à produção de nêutrons. Seria um processo muito mais limpo, infinitamente melhor do que a fissão. Só que é muito difícil conseguir isso. Estão tentando desenvolver esse reator a plasma e estão pesquisando outro reator a laser. Neste se trabalha com pastilhas de elementos que podem se fundir. Com o laser se desenvolve um processo que causa uma explosão nesta pastilha, havendo uma compressão da parte mais interna enquanto a camada mais externa é lançada para fora. A compressão pode gerar condições para os elementos se fundirem gerando energia… Mas, até hoje, eles não conseguiram causar a ignição. O processo se inicia, mas apaga em seguida . A pesquisa continua…

E a radioatividade natural, ela é perigosa?
O que existe é uma diferença de concentração. Na natureza, os elementos químicos aparecem nas mais diversas formas. Você pode ter um núcleo do elemento Potássio que, normalmente, é encontrado na natureza com um núcleo de 20 nêutrons e 19 prótons. Este tipo de Potássio é estável e não radioativo. No entanto, você pode ter outros tipos de potássio adicionando nêutrons. Estes nêutrons a mais não transformam o Potássio em outro elemento, mas apenas em um potássio mais pesado. Esses elementos com diferentes números de nêutrons são denominados isótopos. Alguns desses isótopos podem ser radioativos, isto é, podem ser instáveis. Digamos que a radioatividade é uma situação de equilíbrio instável. Como se tivesse uma pirâmide de bolinhas. Se, de repente, você coloca uma outra bolinha lá no topo, essa pirâmide desmancha. Na natureza, existem vários elementos desse tipo. Existe uma certa probabilidade de encontrá-los, mas a abundância deles não é muito grande. Eles estão distribuídos na natureza, não estão concentrados. Por exemplo o Potássio não radioativo é encontrado em mais do 99% dos casos. Então qual a diferença entre a radioatividade natural e a artificial ? Se você tiver dez, vinte, trinta átomos radioativos, é claro que isso é muito pouco. A radiação de um único átomo é muito pequena. O problema é a concentração… Você sabe o que é 10²³ ?

É um dez com milhões de zeros…
É um número imenso que pode ser encontrado numa grama de material radioativo… Então, quando você concentra este material em um local, aparecem os problemas. É análogo ao caso da radiação solar. Todo mundo toma radiação solar... Ela pode fazer mal, mas em quantidades não muito grandes o organismo pode se defender. Além disto, se você não toma sol, você pode ficar doente. Mas se tomar muito sol, também. A diferença é o nível de concentração...


Informações relacionadas à entrevista neste site:


Para conhecer mais:

© 2001-2006 Vania Mattozo. Todos os direitos reservados.
Desenvolvimento: Kornelius Hermann Eidam.